Titulo: Brokeback Mountain
Autora: Annie Proulx
Tradutor: Guilherme Eddino

Texto gentilmente cedido por:
Flavio Voight

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12:00 PM

Ennis Del Mar acorda antes das cinco, o vento balança o trailer, assobiando ao redor da porta de alumínio e das persianas da janela. As camisas penduradas num parafuso vibram lentamente na brisa. Ele levanta, coçando os pelos cinzentos da barriga e do púbis, vai até o forno à gás, despeja a sobra do café numa gasta caneca esmaltada; a chama a colore de azul. Ele abre a torneira e urina na pia, veste a camisa e os jeans, as botas desgastadas, batendo os calcanhares contra o chão para encaixá-las. O vento se reparte na extremidade curva do trailer e sob sua passagem feroz ele pode ouvir o estalar do cascalho e da areia. Não devia estar sendo nada bom estar na estrada com o trailer para cavalos. Ele tinha que ter arrumado tudo e estar fora dali naquela manhã. O rancho está à venda de novo e eles embarcaram os últimos cavalos, pagaram todo mundo no dia anterior, o dono dizendo, "Dê ao pilantra da imobiliária, estou fora daqui!" jogando as chaves nas mãos de Ennis. Ele iria ter que ficar com a irmã casada até conseguir outro emprego, mas está imerso em prazer pois Jack Twist estava em seu sonho.

O café velho está fervendo mas ele o retira antes de transbordar, despeja na xícara manchada e entorna o líquido preto, deixando uma lembrança do sonho retornar. Se ele não forçar sua atenção, ela poderá requentar o dia, reaquecer aquele velho e frio tempo nas montanhas quando eles eram os donos do mundo e nada parecia errado. O vento rebate contra o trailer como uma nuvem de terra erguendo-se atrás de um caminhão de lixo, se acalma, pára, deixa um silêncio temporário.

Eles cresceram em pequenos e pobres ranchos, em cantos opostos do estado, Jack Twist em Lightning Flat, perto da fronteira com Montana, Ennis Del Mar nas redondezas de Sage, lá pela divisa com Utah, ambos rapazes do interior, saídos da escola no meio do segundo grau, sem perspectivas, crescidos em meio ao trabalho duro e a privações, ambos com comportamento xucro, linguagem xucra, acostumados à vida rotineira. Ennis, criado pelo casal de irmãos mais velhos depois que o carro de seus pais saiu da pista na única curva da Estrada Dead Horse, deixando-os com vinte e quatro dólares em dinheiro e um rancho bancado por dois empréstimos, aplicou-se aos quatorze anos para uma bolsa escolar que o permitiria fazer a viagem de horas entre o rancho e a escola. A picape era velha, sem aquecedor, apenas com um pára-brisa e pneus carecas; quando a transmissão pifou não havia dinheiro para consertar. Ele queria ser um veterano, achava que a palavra trazia alguma distinção, mas o caminhão quebrou e o arremessou direto para o trabalho no roçado.

Em 1963, quando conheceu Jack Twist, Ennis estava de compromisso com Alma Beers. Jack e Ennis diziam estar guardando dinheiro pro futuro; no caso de Ennis aquilo significava uma lata de tabaco com duas notas de cinco dentro. Naquela primavera, ansiosos por um emprego, ambos haviam assinado com a Farm & Ranch Empregos -- como pastor e campista de um mesmo rebanho à norte de Signal. O campo de verão ficava além das árvores de uma área protegida na Montanha Brokeback. Seria o segundo verão de Jack Twist na montanha, o primeiro de Ennis. Nenhum deles tinha vinte anos.

Eles se cumprimentaram no abafado trailer-escritório em frente á uma mesa coberta de papéis rabiscados, um cinzeiro de plástico cheio de bitucas. As venezianas penduradas de modo irregular, formando um triângulo nas luz branca, a sombra da mão do chefe movendo-se sobre ele. Joe Aguirre, com cabelo ondulado da cor das cinzas do cigarro e repartido ao meio, deu-lhes seu ponto de vista.

"O Serviço Florestal marcou acampamentos nos lotes. Os locais podem ficar a umas milhas do pasto onde nós levamos as ovelhas. Tem predadores, ninguém toma conta de madrugada. O que eu quero, um cuida do acampamento no lugar marcado pelo Serviço Florestal, mas o PASTOR" -- apontando para Jack -- "leva uma barraca para o pasto junto das ovelhas, escondido, e irá DORMIR lá. Janta, toma café no acampamento, mas DORME COM AS OVELHAS, cem por cento, SEM FOGUEIRAS, sem deixar NENHUM SINAL. Enrole a barraca toda manhã pro caso de o Serviço Florestal xeretar. Pegue os cachorros, o rifle, durma lá. Verão passado perdi quase 25%. Não quero isso de novo. VOCÊ," disse à Ennis, que passava a mão no cabelo emaranhado, as mãos grandes, o jeans gasto, a camisa de botões, "Toda sexta ao meio-dia desça até a ponte com a lista da semana seguinte e as mulas. Alguém com suprimentos irá chegar lá numa picape." Não perguntou se Ennis tinha um relógio, mas tirou um bastante velho com cordão de uma caixa numa prateleira alta, acertou-o e jogou pra ele como se não merecesse ser passado de mão em mão. "AMANHÃ DE MANHÃ vamos levar vocês até o ponto de partida." Um par de duques indo pra lugar nenhum.

Eles acharam um bar e beberam cerveja pela tarde, Jack contando à Ennis sobre uma tempestade na montanha no ano anterior que matou 42 ovelhas, o cheiro peculiar delas e o jeito dos ferimentos, a necessidade de muito uísque lá em cima. Ele matara uma águia, disse, virou a cabeça pra mostrar a pena da cauda presa em seu chapéu. À primeira vista, Jack parecia bonito o bastante com seu cabelo encaracolado e sua risada rápida, mas para um homem pequeno ele tinha algum peso no quadril e seu sorriso mostrava dentes saltados, não a ponto de deixá-lo comer pipoca numa xícara, mas notáveis. Ele era fascinado com a vida de rodeio e apertava seu cinto com uma fivela de touro, mas suas botas estavam gastas e furadas além de qualquer reparo e estava louco pra chegar em algum lugar, qualquer lugar que não fosse Lightning Flat.

Ennis, nariz adunco e rosto espichado, era desleixado e tinha um tórax um pouco curvado, um pequeno torso apoiado sobre longas pernas, possuía músculos feitos para o cavalo e para a briga. Seus reflexos eram mais rápidos que o normal e tinha visão ruim o bastante pra que ele não gostasse de ler nada além dos catálogos de selas da Hamley.

Os caminhões com as ovelhas e cavalos descarregaram no começo da trilha e um bandoleiro mostrou a Ennis como carregar as mulas, dois pacotes e um estribo em cada animal enfeitado com pequenos diamantes e apertados com as rédeas, dizendo, "Nunca peçam sopa. Sopa é um saco de embalar." Três filhotes de um dos cachorros foram em uma cesta, o menor deles dentro do casaco de Jack, pois ele adorava cãezinhos. Ennis escolheu um cavalo pardo chamado Cigar Butt para montar, Jack uma égua parda que mostrou sem bem arisca. Os cavalos que sobraram incluiam um com cor de rato chamado Grullo, de cujo olhar Ennis gostou. Ennis e Jack, os cães, cavalos e mulas, mil ovelhas e seus carneirinhos subiram pela trilha como água suja numa represa e por sobre a fila de árvores para dentro das grandes campinas floridas e do vento sem fim.

Eles armaram a grande barraca na plataforma do Serviço Florestal, a cozinha e as caixas de grude ajeitadas. Ambos dormiram no acampamento na primeira noite, Jack já enchendo o saco sobre a ordem do Joe Aguirre de dormir-com-as-ovelhas-e-nada-de-fogueira, mas na manhã escura ele selou a égua sem falar muito. O amanhecer chegou num laranja de vidro, manchado por baixo por uma faixa gelatinosa de verde pálido. O corpo da montanha clareou lentamente até chegar à mesma cor da fumaça da fogueira de Ennis na qual ele fazia o café da manhã. O ar frio amansou, os montes de cascalho e os pedaços de terra lançavam sombras do tamanho de um lápis e os pinheiros ao redor deles se misturavam como postes de madeira escura.

Durante o dia Ennis olhava por sobre o vale e às vezes via Jack, um pontinho se movendo na campina alta como um inseto que se move numa toalha de mesa; Jack, em seu acampamento escuro, via a fogueira noturna de Ennis, uma faísca vermelha na grande massa negra da montanha.

Jack chegou tarde certo dia, bebeu suas duas cervejas resfriadas num saco d'água deixado no lado escuro da barraca, comeu duas tigelas de cozido, quatro dos biscoitos de Ennis, uma lata de pêssegos, enrolou um cigarro, assistiu o sol se pôr.

"Quatro horas de viagem por dia," ele disse de saco cheio. "Vir pro café, voltar pras ovelhas, de noite pôr elas pra dormir, voltar pro jantar, voltar pras ovelhas, passar metade da noite acordado e procurando coiotes. Eu devia poder passar a noite aqui. Aguirre não tem direito de mandar fazer isso."

"Quer trocar?" disse Ennis. "Eu não ligaria em fazer o pastoreio, dormir lá fora."

"Não é essa a questão. A questão é, nós dois devíamos ficar no acampamento. E aquela barraca fede a mijo de gato ou coisa pior."

"Não me importaria."

"Pois te digo uma coisa, é levantar uma dúzia de vezes durante a noite pra espantar os coiotes. Tudo bem em trocar, mas vou avisando, não sei cozinhar merda nenhuma. Mas sou bom com o abridor de latas."

"Não é pior que eu, então. Claro, eu não me importo em ir."

Ficaram reservados por uma hora com a proteção da luz amarela do lampião de querosene e lá pelas dez Ennis pegou o Cigar Butt, um bom cavalo noturno, e atravessou o vale gelado até as ovelhas, levando sobra de biscoitos, um pote de geléia e uma jarra de café com ele para o dia seguinte dizendo que economizaria uma viagem, ficar lá até o jantar.

"Atirei num coiote assim que o sol nasceu," ele disse à Jack na noite seguinte, lavando o rosto com água quente, espumando o sabão e esperando que sua navalha ainda tivesse corte, enquanto Jack descascava batatas. "Um filho da puta. Bolas do tamanho de maçãs. Aposto que ele pegou uns carneiros. Parecia que podia comer um camelo. Quer um pouco da água quente? Tem bastante."

"Toda sua."

"Bem, vou lavar tudo que alcançar," ele disse, tirando as botas e os jeans (nada de roupa de baixo ou meias, Jack notou), deslizando o pano verde até os tornozelos.

Tiveram um jantar grandioso em frente ao fogo, uma lata de feijão cada um, batatas fritas e um quarto de uísque, sentaram contra um tronco, as solas das botas e os botões de cobre dos jeans estavam quentes, passando a garrafa enquanto o céu de lavanda perdia a cor e o ar frio aumentava, bebiam, fumavam cigarros, levantando ocasionalmente pra mijar, uma faísca da fogueira no riacho, jogavam gravetos no fogo pra continuar a conversa, falando de cavalos e rodeios, acidentes e feridas antigas, o submarino Thresher perdido dois meses antes e como deviam ter sido os minutos finais, cães que cada um tivera e conhecera, o vento frio, o rancho onde Jack nascera e onde seus pais ainda estavam, a casa da família de Ennis deixada anos antes quando seus pais morreram, o irmão mais velho em Signal e uma irmã casada em Casper. Jack disse que seu pai fora um peão de rodeio conhecido no seu tempo mas mantinha seus segredos para si, nunca dera nenhum conselho para Jack, nunca assistira Jack montar, mas o colocara na sela quando era criança. Ennis disse que o tipo de cavalgada que o interessa era aquela que durava mais de oito segundos e tinha algum propósito. Dinheiro é um bom propósito, disse Jack, e Ennis teve que concordar. Eles respeitavam a opinião um do outro, cada um feliz em ter um companheiro quando não se esperava nenhum. Ennis, cavalgando contra o vento ao voltar para as ovelhas na luz bêbada e traiçoeira, pensou que nunca se sentira melhor, como se pudesse tirar o branco da Lua.

O verão continuou e eles levaram as ovelhas para um novo pasto, trocaram de acampamento; a distância entre este e as ovelhas era maior e a cavalgada noturna mais longa. Ennis ia devagar, dormindo de olhos abertos, mas as horas que ele ficava longe das ovelhas se esticavam mais e mais. Jack soprou um acorde gritante de sua gaita, abafado pelos barulhos da égua, e Ennis tinha uma voz boa e grave; algumas noites eles tentavam arranhar algumas músicas. Ennis sabia as palavras malandras de "Strawberry Roan." Jack tentou uma música de Carl Perkins, urrando "what I say-ay-ay," mas deu preferência a uma canção triste, "Water-Walking Jesus," ensinada por sua mãe que acreditava no Pentecostes, e cantou sóbria e lentamente, atiçando o ganir dos coiotes na distância.

"Muito tarde pra voltar pras ovelhas," disse Ennis, bêbado e de quatro numa hora fria em que a Lua indicava que passavam das duas. As pedras da campina brilhavam em verde e branco e um vento seco assobiava, abaixando o fogo e penetrando no meio da grama amarelada. "Tem outro cobertor, vou deitar aqui fora e tirar um cochilo, vou pra lá assim que clarear."

"Congele aí fora quando o fogo apagar. Melhor dormir na barraca."

"Duvido que vou sentir alguma coisa." Mas ele cambaleou embaixo da lona, tirou as botas, roncou no chão por um tempo, acordou Jack com o bater de seus dentes.

"Jesus Cristo, pare de teimosia e venha até aqui. O saco de dormir é bem grande," disse Jack numa voz irritante e sonolenta. Era bem grande, bem quente, e em pouco tempo eles aprofudaram a intimidade consideravelmente. Ennis já percorrera todas as estradas consertando cercas ou gastando dinheiro, e não queria mais nada quando Jack pegou sua mão esquerda e levou-a até seu pênis ereto. Ennis puxou a mão como se tivesse tocado em fogo, ajoelhou-se, abriu o cinto, abaixou as calças, deixou Jack de quatro e, com a ajuda de um pouco de cuspe, penetrou-o, nada que ele já tinha feito mas que não precisava de nenhum manual de instruções. Eles continuaram em silêncio exceto por algumas inspirações profundas e pelo engasgo de Jack "Falta pouco!", acabaram e dormiram.

Ennis acordou na manhã vermelha com as calças em torno dos joelhos, uma dor de cabeça homérica, e Jack de costas pra ele; sem dizer nada ambos sabiam que seria aquilo pelo resto do verão, as ovelhas que se danassem.

E assim foi. Eles nunca falavam sobre o sexo, deixavam-no acontecer, primeiro apenas na barraca à noite, depois em plena luz do dia com o sol quente a pino, e à noite na luz do fogo, de modo rápido e desajeitado, rindo e murmurando, sem falta de sons, mas sem dizer uma palavra a não ser uma vez em que Ennis disse, "Não sou bicha," e Jack respondeu com um "Nem eu. Isso é só uma vez ou outra. É problema nosso e de mais ninguém." Eram apenas os dois na montanha flutuando no ar eufórico e amargo, atentos como águias enquanto observavam as luzes dos veículos na planície lá embaixo, desligados de todas as coisas comuns e longe dos cães pastores que uivavam durante a noite. Eles acreditavam estar invisíveis, sem saber que Joe Aguirre havia os observado com seus binóculos 10x24 por dez minutos diários, esperando até que abotoassem seus jeans, esperando até que Ennis voltasse para as ovelhas, antes de levar a mensagem enviada pela família de Jack, dizendo que o tio Harold estava com pneumonia no hospital e tinha poucas chances. Mas ele se salvou, e Aguirre subiu a montanha para avisar, com seu olhar fixo e pesado em Jack, sem ao menos desmontar de seu cavalo.

Em agosto Ennis passou uma noite toda com Jack no acampamento e houve uma tempestade que fez o rebanho ir para o oeste e se misturar com as ovelhas de um outro lote. Foram uns cinco dias miseráveis, Ennis e um pastor Chileno que não entendia inglês tentando separá-las, tarefa quase impossível já que as marcas de ferro estavam gastas a essa altura. Mesmo quando os números estavam certos Ennis sabia que as ovelhas ainda estavam misturadas. Tudo parecia misturado de um modo perturbador.

As primeiras neves chegaram cedo, dia treze de agosto, ficando a um pé de altura, mas foram seguidas de um degelo rápido. Na semana seguinte Joe Aguirre mandou a ordem para voltarem -- uma tempestade ainda maior estava chegando do Pacífico -- e eles juntaram tudo e desceram a montanha, pedrinhas rolando em seus calcanhares, nuvens roxas se formando a oeste e o cheiro metálico de neve chegando. A montanha fervia com energia demoníaca, penetrada por raios de sol passageiros que rachavam as nuvens, o vento cortava a grama e subia pelos pinheiros num rugido bestial que atravessava as pedras. Enquanto desciam a encosta Ennis sentiu que estava em câmera lenta, numa queda desesperada e irreversível.

Joe Aguirre pagou-lhes, falou pouco. Olhou para as ovelhas com uma expressão amarga e disse, "Algumas dessas nunca subiram com vocês." A contagem também não era o que ele esperava. Ser rancheiro nunca tinha sido o melhor dos trabalhos.

"Vai pastorear de novo verão que vem?" Jack disse a Ennis na rua, uma perna já dentro de sua picape verde. O vento soprava forte e frio.

"Acho que não." Uma nuvem de poeira subiu e se espalhou pelo ar com cascalho fino e ele apertou os olhos. "Como eu disse, Alma e eu vamos casar em Dezembro. Vou tentar arranjar um rancho. E você?" Ele virou a cara pra não ver o lábio roxo de Jack, por causa do soco que Ennis tinha lhe dado no último dia.

"Se não aparecer nada melhor. Pensei em voltar pra terra dos meus pais, dar uma mão pra eles no inverno, então talvez ir pro Texas na primavera. Se o frio não me pegar."

"Bem, então, acho que te vejo por aí." O vento virou um saco de ração no fim de rua que foi arrastado até debaixo do caminhão.

"Certo," disse Jack, e eles apertaram as mãos, trocaram pancadinhas nas costas, e então havia quarenta pés de distância entre eles e nada a fazer senão partir na direção oposta. Depois de uma milha Ennis sentiu como se alguém estivesse tentando arrancar suas tripas de uma vez só. Ele parou na lateral da estrada e, na neve recém-caída, tentou vomitar mas nada saiu. Ele se sentiu mal como nunca e aquilo demorou um bom tempo pra parar.

Em Dezembro Ennis se casou com Alma Beers e a engravidou em meados de Janeiro. Ele arranjou uns bicos em ranchos, então se estabeleceu nas terras do velho Elwood ao norte de Lost Cabin no distrito de Washakie. Ainda trabalhava lá em Setembro, quando Alma Jr., como ele chamava sua filha, nasceu e seu quarto ficou cheio daquele cheiro de sangue velho e leite e merda de bebê, e os sons eram de choro, a criança mamando, os múrmurios sonolentos de Alma, todos afirmavam a fecundidade e a continuidade da vida para alguém que trabalhava com gado.

Quando as terras de Elwood faliram eles se mudaram pra um apartamento em Riverton em cima de uma lavanderia. Ennis virou operário na construção da estrada, tolerante mas trabalhando aos fins de semana nos bretes pra ter onde deixar seus cavalos. A segunda menina nasceu e Alma queria ficar na cidade perto da clínica pois a criança tinha asma.

"Ennis, por favor, chega de ranchos solitários para nós," ela disse, sentada em seu colo, colocando seus braços finos e frágeis em torno dele. "Vamos arranjar um lugar aqui na cidade?"

"Pode ser," disse Ennis, enfiando a mão dentro da manga da blusa dela e alcançando os pêlos de sua axila. Seus dedos desceram até seus quadris e barriga, sobre o umbigo e joelhos e depois para a parte molhada em direção ao pólo norte ou ao Equador dependendo da direção para a qual se navega, acariciando até ela se contorcer e empurrar os quadris para baixo, até que ele parou, bem rápido como ela odiava. Ficaram no pequeno apartamento que ele preferia pois podia ser deixado a qualquer hora.

O quarto verão desde a montanha Brokeback chegou e em junho Ennis recebeu uma carta de Jack Twist, o primeiro sinal de vida em todo aquele tempo.

'Amigo essa carta está bem atrasada. Espero que você a receba. Ouvi falar que está em Riverton. Chego no dia 24, pensei em passar por aí e te comprar uma cerveja. Responda se puder, diga se está aí.'

O endereço de retorno era Childress, Texas. Ennis respondeu, 'Pode apostar', deu o endereço de Riverton.

O dia estava claro e quente naquela manhã, mas ao meio-dia as nuvens haviam chegado do oeste trazendo uma brisa com elas. Ennis, vestindo sua melhor camisa, branca com listras pretas, não sabia que hora Jack chegaria e então tirou o dia de folga, andava pra lá e pra cá, olhando para a rua empoeirada. Alma estava dizendo alguma coisa sobre levar o tal amigo ao restaurante pra jantar ao invés de cozinhar naquele calor, se eles achassem uma babá, mas Ennis disse que preferia apenas sair com Jack e ficar bêbado. Jack não era do tipo que ia em restaurantes, ele disse, lembrando das colheres sujas enfiadas nas latas vazias de feijão em cima de um tronco.

Um pouco mais tarde, os trovões rugiam, aquela mesma picape verde surgiu na distância e ele viu Jack saltar pra fora, a lataria gasta e torta. Uma brisa quente soprou sobre Ennis e ele saiu pro quintal fechando a porta atrás de si. Jack subiu os degraus de dois em dois. Eles se agarraram pelos ombros e deram um abraço apertado, arrancando o fôlego um do outro, dizendo filho da puta, filho da puta, então, fácil como a chave certa na fechadura certa, suas bocas se juntaram, e com força, os dentes grandes de Jack pedindo sangue, seu chapéu caindo no chão, as barbas por fazer raspando, a saliva quente escorrendo, e a porta abrindo e Alma vendo os ombros esticados de Ennis por alguns segundos e fechando a porta de novo e ainda eles se agarravam, pressionando peitos e virilhas e coxas e pernas umas contra as outras, de modo ofensivo para outrem até pararem pra respirar e Ennis, ruim em elogios, disse o que costumava dizer às filhas e aos cavalos: 'querido'.

A porta abriu de novo um pouco e Alma apareceu sob a luz que vinha de fora.

O que ele podia dizer? "Alma, esse é Jack Twist, Jack, minha mulher Alma." Ele arfava. Ele podia sentir o cheiro de Jack -- o odor intensamente familiar de cigarros, suor e uma doçura difícil de perceber como a grama, e com ela o frio passageiro da montanha. "Alma," ele disse, "Jack e eu não nos vemos há quatro anos." Como se esta fosse uma razão. Ele gostou de a luz estar fraca na plataforma mas não deu as costas para ela.

"Já imaginava," disse Alma com uma voz baixa. Ela sabia o que tinha visto. Atrás dela na sala um raio clareou a janela como um lençol branco esvoaçante e o bebê começou a chorar.

"Você tem filhos?" disse Jack. A mão trêmula dele esbarrou na de Jack, uma corrente elétrica pareceu estalar entre eles.

"Duas garotinhas," Ennis disse. "Alma Jr. e Francine. Adoro elas." A boca de Alma tremeu.

"Eu tenho um garoto," disse Jack. "Com oito meses. Ah, e casei com uma bela garota Texana lá em Childress -- Lureen." Ennis podia sentir como Jack tremia apenas pela vibração no piso de madeira.

"Alma," ele disse. "Jack e eu vamos sair e tomas umas. Pode ser que eu não volte essa noite, vamos beber e papear."

"Já imaginava," Alma disse, tirando um dólar do bolso. Ennis adivinhou que ela ia pedir um maço de cigarros, traria-os depois.

"Prazer em conhecê-la," disse Jack, tremendo como um cavalo arisco.

"Ennis -- " disse Alma com uma voz embargada, mas isso não o parou enquanto ele descia as escadas e ele respondeu, "Alma, se quiser cigarros tem alguns no bolso da minha camisa azul no quarto."

Eles partiram no caminhão de Jack, compraram uma garrafa de uísque e em vinte minutos estavam no Motel Siesta reservando um quarto. Alguns blocos de feno presos à janela junto com a chuva e o vento que batiam à porta do quarto ao lado por toda a noite.

O quarto fedia a sêmen e fumaça e suor e uísque, a carpete antigo e feno velho, couro de sela, merda e sabão barato. Ennis jazia com as pernas afastadas, cansado e molhado, respirando fundo, o pênis ainda um pouco inchado, Jack soprando nuvens do cigarro como descargas de baleia, e Jack disse, "Cristo, deve ser todo o tempo em que você fica montado em cavalos que faz isso ser tão bom. Temos que falar sobre isso. Juro por Deus que não sabia que íamos fazer isso de novo -- sim, sabia. Por isso que estou aqui. Eu tinha certeza. Fiquei em brasa por todo o caminho, não via a hora de chegar."

"Não sabia onde você tinha se enfiado," disse Ennis. "Quatro anos, eu meio que esqueci de você. Achei que tinha se ferido com aquele soco."

"Cara," disse Jack, "eu estava nos rodeios lá no Texas. Lá que eu conheci a Lureen. Olha ali na cadeira."

No encosto da suja cadeira cor-de-laranja ele viu o brilho de uma fivela. "Montando touros?"

"É. Não fiz nem uns três mil dólares naquele ano. Quase morri de fome. Tive que pedir tudo emprestado dos outros caras, menos minha escova de dentes. Atravessei o Texas inteiro. Metade do tempo fiquei embaixo daquela merda de picape tentando consertá-la. Mas nunca pensei em perder. Lureen? Tem bastante grana em jogo. O velho dela tem bastante. Tem um negócio de máquinas agrícolas. Claro que ele não vai dar um tostão pra ela, e me odeia, então as coisas estão difíceis --"

"Bem, tem que ir levando. O Exército não te pegou?" Os trovões soavam na distância ao Leste, distanciando-se em círculos vermelhos de luz.

"Eu não teria serventia pra eles. Tenho umas vertebras quebradas. E um osso do braço trincado, bem aqui, você não faz idéia como montar em touro acaba com as coxas -- fica cada vez pior. Mesmo com as proteções os ossos sempre trincam um pouco a cada montaria. E te digo, dói pra porra depois. Tive uma fratura na perna. Quebrei em três lugares. Foi um baita dum boi que me livrou de mim em uns três segundos e ainda veio atrás de mim. Mas tive sorte. Tem umas outras coisas, umas costelas ferradas, uns tendões doloridos, uns ligamentos. Não é que nem no tempo do meu pai. Os caras com grana vão pra faculdade, viram atletas treinados. Agora tem que ter grana pra ir pros rodeios. O velho da Lureen não me daria um centavo se eu caísse uma vez. E eu sei como o negócio funciona pra saber que não vou ter sucesso. Outros motivos. Vou parar enquanto ainda consigo andar.

Ennis puxou a mão de Jack até sua boca, tragou o cigarro, expirou. "Você com certeza parece inteiro pra mim. Sabe, Fiquei todo esse tempo tentado perceber se eu era -- ? Sei que não sou. Quer dizer nós dois temos mulher e filhos, certo? Gosto de fazer com mulheres, certo, mas Jesus, nem tem comparação. Nunca pensei em fazer com outros caras mas eu bati umas cem vezes pensando em você. Você faz com outros caras? Jack?"

"Não, que nada," respondeu Jack, que na verdade andava com mais do que touros. "Sabe, a velha Brokeback fez a gente se conhecer e claro que ainda não acabou. Temos que pensar em que porra vamos fazer agora."

"Naquele verão," disse Ennis. "Quando a gente se separou depois de receber a grana eu tive uma dor no intestino tão forte que parei e tentei vomitar, pensei que tinha comido alguma coisa estragada naquele lugar em Dubois. Levei um ano pra perceber que era porque eu não devia ter deixado você sair de perto de mim. Mas já era bem, bem tarde."

"Cara," disse Jack. "Temos um problema aqui. Temos que decidir o que fazer."

"Duvido que tenha alguma coisa pra gente fazer agora," disse Ennis. "Estou falando, Jack, construí uma vida nesses anos. Adoro minhas filhas. Alma? Não é culpa dela. Você tem seu filho e sua mulher, sua casa no Texas. Você e eu não podemos ficar juntos se aquilo que aconteceu lá" -- ele apontou na direção do quarto com a cabeça -- "tomar conta da gente assim. Se fizermos no lugar errado, estamos mortos. Não dá pra controlar. Isso me assusta pra caralho."

"Tenho que dizer, cara, talvez alguém nos viu naquele verão. Eu voltei lá em Junho, pensando em fazer o trabalho de novo -- não fiz, fui pro Texas -- e Joe Aguirre estava no escritório e disse pra mim, 'Vocês dois acharam um jeito de fazer o tempo passar lá em cima, não é?' eu disfarcei mas quando saí vi que ele tinha um par de binóculos enormes pendurados na parede. O ex-chefe se recostou na cadeira e esta rangeu. Ele disse, 'Twist, vocês não estavam sendo pagos pra deixar os cães cuidarem das ovelhas e ficarem dando umas' e se recusou a contratá-lo de novo. Ele continuou, "É, aquele seu soco me surpreendeu. Nunca revidei com um golpe sujo."

"Aprendi com meu irmão K.E., três anos mais velho que eu, me batia todo dia. Meu pai cansou de me ver chorando pela casa todo dia e quando eu tinha uns seis anos me chamou e disse, Ennis, você tem um problema e tem que consertá-lo ou ele vai continuar com você até você chegar aos 90 e o K.E. aos 93. Eu disse, ele é maior que eu. Meu pai disse, Você tem que pegar ele desprevenido, não diga nada pra ele, faça ele sentir dor, saia de perto e fique fazendo várias vezes até ele entender. Nada como machucar uma pessoa pra fazê-la ouvir. E eu fiz. Peguei ele no paiol, pulei sobre ele nas escadas, sufoquei ele com o travesseiro durante a noite. Levou uns dois dias. Nunca mais tive problemas com o K.E. desde então. Uma lição foi, não dizer nada e sair de perto." Um telefone tocou no quarto ao lado, tocou e tocou, parou abruptamente no meio do toque.

"Você não me pega de novo," disse Jack. "Ouça, estou pensando, se a gente tivesse um rancho juntos, uns bois e vacas, seus cavalos, seria uma vida boa. Como eu disse, estou largando os rodeios. Não sou nenhum medroso mas não consigo tirar grana dessa merda e não dá pra ficar gastando os ossos assim. Eu pensei, tenho esse plano, Ennis, a gente pode, eu e você. O velho da Lureen, acho que ele me daria uma grana pra eu sumir. Mais ou menos isso -- "

"Ei, ei, ei. Não vai ser assim. Não podemos. Estou preso ao que tenho, dentro desse círculo. Não dá pra sair, Jack. Não quero ser um desses caras que se vê por aí às vezes. E não quero morrer. Tinha dois caras que tinham um rancho perto de casa, Earl e Rich -- meu pai comentava toda vez que passava por eles. Eles eram motivo de chacota mesmo sendo uns velhotes durões. Eu tinha o quê, uns nove anos, e eles acharam o Earl morto num dique de irrigação. Surraram ele com um pé-de-cabra, arrastaram ele pelo pau até arrancar, só sangue. O que aquele pé-de-cabra fez parecia pedaços de tomate queimado em cima dele, o nariz destroçado porque arrastaram ele no cascalho."

"Você viu isso?"

"Meu pai fez questão que eu visse. Me levou pra ver. Eu e K.E. Meu pai deu risada. Caralho, ainda acho que ele fez aquilo. Se ele estivesse vivo e com a cabeça na porta ele ia correndo pegar o pé-de-cabra. Dois caras vivendo juntos? Não. A gente pode no máximo se encontrar de vez em quando em algum lugar bem no fim do mundo --"

"Quanto é de vez em quando?" perguntou Jack. "De vez em quando a cada quatro anos?"

"Não," disse Ennis, evitando perguntar de quem era a culpa. "Odeio pensar que você vai embora amanhã cedo e eu vou voltar pro trabalho. Mas se não tem jeito, deve-se aguentar," ele disse. "Merda. Eu tenho olhado pras pessoas na rua. Isso acontece com os outros? Que diabo elas fazem?"

"Não acontece no Wyomin e se acontece eu não sei o que eles fazem, talvez vão pra Denver," disse Jack, se sentando, virando-se de costas pra ele, "e estou pouco me ferrando. Porra, Ennis, tire uns dias de folga. Agora. Tire a gente daqui. Jogue suas coisas na traseira do caminhão e vamos pras montanhas. Uns dias. Ligue pra Alma e diga que está indo. Vamos lá, Ennis, você tirou o meu avião do céu -- me dê um motivo pra ficar. Isso não é uma coisa qualquer entre a gente."

O soar vazio no quarto ao lado recomeçou, e como se fosse atender, Ennis pegou o telefone no criado-mudo, ligou pro seu próprio número.

Uma lenta corrosão começou entre Ennis e Alma, nenhum problema sério, só umas coisas corriqueiras. Ela trabalhava como atendente numa quitanda, sempre teve que trabalhar pra sanar as contas que Ennis fazia. Alma pediu que ele usasse camisinha porque não queria outra gravidez. Ele negou, disse que adoraria deixá-la em paz se ela não quisesse mais filhos dele. Respirando fundo ela disse, "Eu até teria se você ajudasse. E além disso, afinal, o que você gosta de fazer não faz muitos filhos."

O ressentimento dela aumentava pouco a pouco de ano em ano: o abraço que ela vira, as viagens de pescaria uma ou duas vezes por ano com Jack Twist e nunca tirava férias com ela e as garotas, a enclinação por sair e se divertir, o comodismo de ser mal pago pelo serviço desgastante nos ranchos, sua propensão a dormir assim que deitava na cama, seu fracasso ao procurar por um emprego permanente e decente na cidade ou na companhia de energia, deixaram-na pensativa e quando Alma Jr. fez nove e Francine sete ela disse, o que estou fazendo ainda com ele, se divorciou de Ennis e casou com o quitandeiro de Riverton.

Ennis voltou a trabalhar nos ranchos, era contratado aqui e ali, nunca ganhando muito mas gostando de trabalhar com gado de novo, livre pra desistir, pedir demissão se quisesse, e ir pras montanhas às vezes. Ele não tinha nenhum sentimento real, só uma vaga sensação de fracasso, e mostrou que estava tudo bem aceitando ir ao jantar de Ação de Graças na casa de Alma e seu quitandeiro e as crianças, sentando entre as garotas e falando pra elas sobre cavalos, contando piadas, tentando não ser um pai tristonho. Depois da torta Alma levou-o à cozinha, raspou os pratos e disse que se preocupava com ele e que ele devia se casar de novo. Ele notou que ela estava grávida, uns quatro, cinco meses, ele deduziu.

"Uma vez basta," ele disse, curvando-se sobre o balcão, sentindo-se grande demais para o cômodo.

"Você ainda vai pescar com aquele Jack Twist?"

"Às vezes." Ela raspava com tanta força que parecia que ia arrancar a estampa do prato.

"Sabe," ela disse, e pelo tom de voz ele percebeu que alguma coisa estava vindo, "Eu me perguntava como você nunca trouxe nenhuma truta pra casa. Você sempre dizia que pegava várias. Então uma vez eu peguei sua cesta na noite antes de você ir numa das suas viagens -- a etiqueta com o preço ainda estava nela depois de cinco anos -- e coloquei um bilhete na alça. Dizia, oi Ennis, traga umas trutas, com amor, Alma. E quando voltou disse que tinha pego uns lambaris e comido. Lembra? Eu olhei na cesta quando pude e vi que meu bilhete ainda estava lá e que a cesta não tinha encostado na água." Como se a palavra água tivesse invocado a mesma, Alma abriu a torneira e a água ensopou os pratos.

"Isso não significa nada."

"Não minta, não tente me enganar, Ennis. Eu sei o que quer dizer. Jack Twist? Um safado. Você e ele -- "

Ela havia passado dos limites. Ele agarrou-lhe o pulso; lágrimas rolaram, um prato trincou.

"Cale a boca," ele disse. "Cuide da sua vida. Você não sabe de nada."

"Vou gritar pro Bill."

"Vamos, pode gritar. Anda. Vou fazer ele comer terra e você também." Ele apertou de novo e o pulso dela ficou vermelho, pôs o chapéu e saiu batendo a porta. Foi ao bar Black & Blue Eagle naquela noite, ficou bêbado, brigou e saiu. Não viu as filhas por um bom tempo, imaginando se elas o respeitariam quando ficassem velhas o bastante pra sair da casa de Alma.

Eles não eram mais jovens afinal. Jack emagreceu nos ombros e nas coxas, Ennis continuou fino como um varal, andava por aí com botas velhas, jeans e camisa em verões e invernos, mais um casaco de lona no inverno. Alguns sinais de expressão surgiram nas pálbebras e deram-lhe um ar cansado, o nariz quebrado ficou adunco.

Ano a ano eles faziam seus percursos pelas campinas altas e pelos diques nas montanhas, cavalgando por Big Horns, Medicine Bows, sul das Gallatins, Absarokas, Granites, Owl Creeks, as terras de Bridger-Teton, as terras geladas e as Shirleys, Ferrises e as Rattlesnakes, Salt River Range, dentro dos Wind Rivers mais de uma vez, as Sierra Madres, Gros Ventres, as Washakies, Laramies, mas sem nunca retornar à Brokeback.

Lá no Texas o sogro de Jack morreu e Lureen, que herdou os negócios da fazenda, provou ser boa pra lidar com eles. Jack recebeu um vago título gerencial, viajando pra fazer estoques e eventos com máquinas de agricultura. Agora ele tinha algum dinheiro e achava meios de gastá-lo nas viagens. Um leve sotaque texano dava sabor às suas frases, "cow" virava "kyow" e "wife" virava "waf". Ele tinha realinhado os dentes e feito obturações, disse que não tinha doído, e pra completar deixou cresceu um vasto bigode.

Em maio de 1983 eles passaram uns dias frios numa série de lagos gelados e sem nome, até chegarem ao dique do rio Hail Strew.

Lá em cima, o dia estava bom mas a trilha sumiu e as margens estavam escorregadias. Foram embora e passaram por um vale, os cavalos pisando em galhos secos e duros, Jack, a mesma pena de águia no chapéu velho, levantava a cabeça no meio-dia pra respirar o ar com perfume de madeira e resina, folhas secas de pinheiro e rochas quentes, bagas amargas espremidas sob as ferraduras dos cavalos. Ennis, atento ao tempo, viu as nuvens quentes à oeste que se aproximavam, mas o azul era tão profundo, disse Jack, que dava pra se perder nele.

Lá pelas três atravessaram uma passagem para uma encosta a sudeste sobre a qual o sol forte da Primavera conseguia chegar, voltaram à trilha que agora estava limpa de neve. Eles ouviam o murmúrio do rio que abafava o som de um trem na distância. Depois de uns vinte minutos foram surpreendidos por um urso preto que revirava um tronco à procura de insetos e o cavalo de Jack relinchou e empinou, Jack dizendo "Oa! Oa!" e Ennis cambaleando e bufando mas ainda parado. Jack alcançou o rifle não era preciso; o urso assustado galopou pra dentro das árvores de modo desajeitado, como se estivesse prestes a desabar.

O rio com cor de chá corria rápido conforme a neve derretia, espuma se formando em cada rocha alta, nas poças e quedas. Os chorões com seus galhos ocre balançavam pesadamente, as flores cheias de pólen pareciam impressões digitais amarelas. Os cavalos pararam pra beber e Jack desmontou, juntou um pouco da água gelada nas mãos, gotas cristalinas caindo de seus dedos, boca e queixo brilhando molhados.

"Vai ficar doente fazendo isso," disse Ennis, e depois, "Lugar bonito," olhando para a encosta sobre o rio, dois ou três restos de cinzas de velhos acampamentos de caçadores. Uma campina inclinada subia lá em cima, protegida por uma linha de troncos. Havia bastante madeira seca. Eles armaram acampamento sem falar muito, deixaram os cavalos na campina. Jack quebrou o lacre de uma garrafa de uísque, deu um longo e quente gole, expirou com força, disse, "Essa é uma das duas coisas que eu preciso agora," pôs a tampa e jogou-a para Ennis.

Na terceira manhã lá estavam as nuvens que Ennis esperava, um amontoado cinzento à oeste, uma barreira de escuridão levada pelo vento. Sumiu depois de uma hora se transformando em neve suave de Primavera que caiu molhada e pesada. À noite ficaram mais frias. Jack e Ennis passavam um baseado de mão em mão, o fogo queimava, Jack inquieto e sempre reclamando sobre o frio, mexendo no fogo com um graveto, virando o botão do rádio transistor até as baterias acabarem.

Ennis disse que tinha dado uns beijos numa garota que trabalhava meio-período no bar Wolf Ears em Signal perto de onde ele trabalhava com gado nas terras de Stoutamire, mas não estava dando certo e ela tinha uns problemas dos quais ele queria distância. Jack disse que estava rolando alguma coisa entre ele e a mulher de um rancheiro lá pras bandas de Childress e pelos últimos meses ele andava receoso por medo de tomar um tiro de Lureen ou do marido dela. Ennis riu e disse que talvez ele merecesse. Jack disse que tudo andava bem mas que sentia uma puta falta de Ennis às vezes.

Os cavalos relinchavam na escuridão longe do círculo de luz da fogueira. Ennis pôs o braço em torno de Ennis, puxou-o pra perto, disse que via suas garotas uma vez por mês, Alma Jr. tinha dezessete e era tão alta quanto ele, Francine era elétrica. Jack deslizou a mão fria entre as pernas de Ennis, disse que se preocupava com seu garoto que era, sem dúvida, disléxico ou alguma coisa do tipo, não conseguia fazer nada, quinze anos e mal conseguia ler, ele percebia mas Lureen não admitia e fingia que estava tudo bem, se recusava a procurar ajuda. Ele não sabia resposta nenhuma. Lureen tinha a grana e dava as ordens.

"Eu queria ter um filho homem," disse Ennis, abrindo os botões, "mas só tive garotinhas."

"Eu não queria nenhum," disse Jack. "Mas dane-se, tudo foi do jeito que eu queria. Nada nunca veio até mim do jeito certo." Sem se levantar ele jogou lenha na fogueira, as faíscas subiram com suas verdades e mentiras, algumas cinzas pousaram em suas mãos e em seus rostos, não pela primeira vez, e eles rolaram na terra. Uma coisa nunca mudou: a brilhante energia dos encontros não-frequentes era escurecida pelo sentimento de tempo passando, nunca havia tempo o bastante, nunca.

Um ou dois dias depois no estacionamento, os cavalos voltaram para o trailer, Ennis estava pronto pra voltar pra Signal, Jack ia pra Lighting Flat ver seu velho. Ennis se curvou sobre a janela de Jack, disse aquilo que havia segurado a semana toda, que provavelmente não se veriam de novo até novembro depois de um carregamento de gado e antes de chegar o inverno.

"Novembro, Que diabo houve com agosto? Olhe aqui, nós combinamos agosto, nove, dez dias. Cristo, Ennis! Por que não disse antes? Você teve uma semana inteira pra dizer. E por que sempre nessa porra de frio? Devíamos fazer algo, ir pro sul. Devíamos ir pro México um dia."

"México? Jack, você me conhece. Tudo que já viajei foi como andar em círculos. Vou ter que cuidar da máquina de embalar feno em agosto, esse é o problema com agosto. Vai com calma, Jack. Nós podemos caçar em novembro, pegar um bom alce. A gente tenta alugar a cabana de Don Wroe de novo. Foi bom lá naquele ano."

"Sabe cara, isso é uma porra duma situação insatisfatória. Antes era bem mais fácil. Agora é como se encontrar com o Papa."

"Jack, eu tenho um emprego. Naqueles dias eu saia dos serviços sem me importar. Você tem uma mulher com grana, um bom trabalho. Se esqueceu de como é estar liso o tempo todo. Já ouviu falar em pensão? Estou pagando há anos e ainda falta mais. Vou te dizer, não posso perder esse emprego. E não posso tirar folga. Foi duro conseguir essa -- alguns bezerros ainda estão nascendo. Não dá pra sair. Não dá. Stoutamire é um canalha e encheu o saco quando pedi a semana de folga. Não culpo ele. Ele talvez não tenha pregado o olho desde que saí. Tenho que compensar em agosto. Tem alguma idéia melhor?"

"Eu tinha." O tom era amargo e incisivo.

Ennis não disse nada, ergueu-se, esfregou a testa; um cavalo empinou dentro do trailer. Ele andou até o caminhão, pôs a mão sobre a lataria, disse algo que apenas os cavalos ouviram, virou e voltou andando rápido.

"Você foi pro México, Jack?" O México era o lugar, ele ouvira. Ele começava a passar dos limites, estava saltando a cerca.

"Estive sim, qual o problema, porra?" Esperou por aquilo por todos aqueles anos, e chegou do nada, de surpresa.

"Tenho que te dizer isso uma vez, Jack, e não estou brincando. O que eu não sei," disse Ennis, "todas as coisas que eu não sei poderiam terminar com você morto se eu as descobrisse."

"Ah é," disse Jack, "e só vou dizer uma vez. A gente podia ter tido uma vida boa juntos, um puta vida boa. Mas você não quis, Ennis, então tudo o que nos resta é a montanha Brokeback. Tudo ficou lá. É tudo o que temos, cara, tudo, espero que perceba isso se descobrir o resto. Conte as poucas vezes que estivemos juntos em vinte anos. Veja a coleira curta em que você me mantém, e aí pergunta sobre o México e diz que me mataria por precisar de mim e não me ter sempre à disposição. Você não tem idéia de como isso é. Eu não sou você. Não dá pra ficar com uma ou duas fodas nas montanhas a cada ano. Você é muito pra mim, Ennis, seu filho de uma vadia. Queria saber como te esquecer."

Como vastas nuvens de vapor de balneários de inverno, todos aqueles anos de coisas não ditas e agora impossíveis de se dizer -- admissões, declarações, vergonhas, culpas, medos -- subiram ao redor deles. Ennis parecia que tinha levado um tiro no coração, o rosto cinza e profundo, se contorcendo, olhos apertados, punhos fechados, pernas tremendo, caiu no chão de joelhos.

"Jesus," disse Jack. "Ennis?" Mas antes que ele pudesse sair do caminhão, tentando descobrir se era algum ataque cardíaco ou uma sobrecarga de raiva incendiária, Ennis pôs-se em pé e de algum modo, como um cabide entortado pra abrir uma tranca e levado à forma inicial novamente, eles levaram as coisas até o jeito que estavam antes, pois não havia nada de novo. Nada terminado, nada começado, nada resolvido.

O que Jack lembrava com saudade apesar de não conseguir evitar ou entender foi aquela vez num verão distante em Brokeback em que Ennis se aproximou por trás dele e puxou-o pra perto, o abraço silencioso satisfazendo algum prazer não-carnal, compartilhado pelos dois.

Ficaram daquele jeito por um bom tempo em frente ao fogo, que aumentava formando grandes jatos de luz, a sombra de seus corpos uma única coluna sobre a pedra. Os minutos passavam marcados pelo relógio redondo no bolso de Ennis, pelo crepitar do fogo torrando pedaços de carvão. As estrelas piscavam através das camadas de calor sobre a fogueira. A respiração de Ennis lenta e quieta, ele murmurava, balançava lentamente na luz das faíscas e Jack sentia suas batidas fortes do coração, as vibrações dos murmúrios como eletricidade correndo e, ainda em pé, adormeceu mas não era bem um sono, mas algo mais sonâmbulo e hipnótico até que Ennis, lembrando-se da velha frase que ouviu ainda criança, antes de sua mãe morrer, disse, "Hora de pregar os olhos, caubói. Tenho que ir. Vamos, está dormindo em pé como um cavalo," e balançou Jack, empurrou-lhe e sumiu na escuridão. Jack ouviu as esporas se agitarem enquanto ele montava, as palavras "te vejo amanhã," e o cavalo relinchando e tremendo, os cascos batendo na pedra.

Tempos depois, aquele abraço sonolento solidificou em sua memória como o único momento de felicidade sincera e afortunada em suas vidas separadas e difíceis. Nada o estragara, nem saber que Ennis não o abraçaria mais porque não queria mais ver ou sentir que era Jack quem abraçava. E talvez, ele pensou, eles nunca iriam mais longe do que isso. Deixe estar, deixe estar.

Ennis não soube do acidente por meses até que seu cartão-postal para Jack dizendo que Novembro ainda parecia ser a próxima chance voltou com o carimbo FALECIDO. Ele ligou para o número de Jack em Childress, algo que ele só tinha feito uma vez quando Alma se divorciou dele e Jack entendeu mal o motivo da ligação, dirigiu doze mil milhas ao norte para nada. Era só um engano, Jack ia atender, tinha que atender. Mas não. Era Lureen e ela disse 'quem? quem é?" e quando ele disse de novo ela confirmou em voz baixa que sim, Jack estava na estrada quando o pneu estourou. O câmbio foi danificado de algum jeito e a força da explosão atirou o metal no seu rosto, quebrou o nariz e a mandíbula e deixou ele desmaiado pra trás. Quando o encontraram ele já tinha se afogado no próprio sangue.

Não, ele pensou, pegaram ele com o pé-de-cabra.

"Jack costumava falar sobre você," ela disse. "Você é o cara da pescaria ou da caça, estou sabendo. Teria te avisado," ela disse, "mas não sabia nome ou endereço. Jack tinha o endereço da maioria dos amigos dele na cabeça. Foi terrível. Ele tinha só 39 anos."

Toda a tristeza das planícies do norte se apossou dele. Ele não sabia como tinha sido, o pé-de-cabra ou um acidente mesmo, sangue afogando Jack e ninguém pra virá-lo. Em meio ao assobio do vento ele ouviu o som do aço destruindo osso, o estalido vazio de um pé-de-cabra.

"Onde ele está enterrado?" Ele queria matá-la por deixar Jack morrer na estrada de terra.

A voz baixa e Texana escorregou pelo fio. "Nós pusemos uma lápide. Ele dizia que queria ser cremado, e suas cinzas espalhadas na montanha Brokeback. Não sei onde fica. Então ele foi cremado, como queria, e como eu disse, metade das cinzas foram enterradas aqui, e a outra metade eu mandei pra família dele. Pensei que a tal da montanha ficava no lugar onde ele cresceu. Mas conhecendo Jack, deve ser algum lugar de fantasia onde os pássaros cantam e há uma fonte de uísque."

"Nós levamos um rebanho pra pastar em Brokeback um verão," disse Ennis. Ele mal podia falar.

"Ele disse que era o lugar dele. Pensei que ele estava falando sobre beber, beber uísque lá em cima. Ele bebia muito."

"A família dele ainda está em Lightning Flat?"

"Ah sim. Vão ficar lá até morrerem. Nunca os conheci. Eles não vieram pro funeral. Tente falar com eles. Acho que eles iriam gostar de satisfazer o pedido do filho."

Sem dúvida, ela era educada mas a voz era fria como neve.

A estrada até Lightning Flat atravessava o interior desolado e passava por uma dúzia de ranchos abandonados espalhados pela planície em intervalos de oito ou dez milhas, casa sentadas e vazias em meio ao capim, cercas de currais quebradas. A caixa de correio dizia John C. Twist. O rancho era diminuto, o mato tomava conta. O armazém ficava muito longe pra ele ter idéia da condição deles, mas viu que criavam uns bois pretos. Uma varanda se projetava em frente à pequena casa marrom, quatro cômodos, dois em cima, dois em baixo.

Ennis sentou à mesa da cozinha com o pai de Jack. A mãe de Jack, determinada e cuidadosa em seus movimentos apesar de estar se recuperando de uma operação, disse, "Você quer um pouco de café? Um pedaço de bolo de cereja?"

"Obrigado madame, vou tomar um pouco de café mas não quero bolo agora."

O homem velho estava sentado em silêncio, as mãos dobradas sobre o plástico da toalha de mesa, encarava Ennis com uma expressão de raiva, como se soubesse de tudo. Ennis percebeu nele um tipo nada incomum que tinha a necessidade de ser o pato durão no lago. Ele não via muito do Jack em nenhum deles, respirou fundo.

"Me sinto horrível por causa do Jack. Nem sei dizer o quanto. Conheci ele há muito tempo. Vim até aqui para dizer que se quiserem que eu leve as cinzas dele até Brokeback como a mulher dele disse eu o faria com prazer."

Houve um silêncio. Ennis limpou a garganta mas não disse mais nada.

O velho disse, "Pois eu sei onde fica essa montanha Brokeback. Ele se achava muito especial pra ser enterrado perto da família."

A mãe de Jack ignorou isso, disse, "Ele costumava vir todo ano, mesmo depois de casar e ir pro Texas, e ajudar o pai no rancho por uma semana, arrumar o portão, cortar o mato. Eu deixei o quarto dele do jeito que era quando ele era menino e acho que ele gostava disso. Se quiser pode dar uma olhada lá."

O velho falou com raiva, "Não tem ninguém pra ajudar aqui, Jack vivia dizendo, 'Ennis Del Mar', ele dizia, 'Vou trazê-lo aqui um dia desses e nós vamos reeguer esse rancho.' Ele tinha alguma idéia maluca de que vocês dois iam mudar pra cá, fazer uma cabana e me ajudar a cuidar do rancho. Então na primavera passada ele veio dizendo que tinha outro cara que ia vir aqui com ele e construir uma casa e ajudar no rancho, algum vizinho dele lá no Texas. Disse que ia largar a mulher e voltar pra cá. Disse tudo isso. Mas como a maioria das idéias dele, nada disso aconteceu."

E então ele entendeu que tinha sido o pé-de-cabra. Ele levantou, disse que gostaria de ver o quarto de Jack, se lembrou de uma das histórias de Jack sobre seu velho. Jack era circuncisado e o velho não; ele incomodara-se ao notar a deformidade anatômica durante uma ereção. Tinha uns três ou quatro anos, disse, sempre chegando tarde ao banheiro, se confundindo com os botões, com o assento, o peso daquilo e vivia derramando nas bordas. O velho odiava isso e uma vez ficou insano. "Cristo, ele me jogou no chão do banheiro, me bateu com o cinto. Pensei que ia morrer. Então ele disse, 'Quer ver como é ficar com mijo por toda parte? Vou te mostrar,' e ele pôs pra fora e despejou tudo em cima de mim, me ensopou, então me jogou uma toalha e me fez limpar o chão, lavar as roupas e a toalha na banheira, e eu berrando e esperneando. Mas quando ele mijou em mim eu notei que ali havia mais do que tinha notado. Eu vi que o meu era cortado diferente que nem uma marca de gado. Não tinha mais como acertar as coisas."

O quarto, no topo de uma escata íngreme, era minúsculo e quente, o sol da tarde entrava pela janela à oeste, batendo na cama de criança colocada contra a parede, uma escrivaninha manchada de tinta, uma cadeira de madeira, uma arma num suporte sobre a cama. A janela dava vista para a estrada de cascalho que seguia para o sul e ocorreu-lhe que aquela era a única estrada que Jack conhecera enquanto crescia. Uma foto antiga de revista mostrando uma estrela de cinema de cabelo escuro estava colada na parede ao lado da cama, o tom da pele virara magenta. Ele ouvia a mãe de Jack lá embaixo abrindo torneiras, enchendo a chaleira e colocando-a de novo no fogão, perguntando algo ao velho numa voz abafada.

O armário era uma cavidade baixa com uma vara de madeira encaixada de comprido, uma cortina gasta separava-o do resto do cômodo. Dentro havia dois pares de jeans passados e dobrados meticulomente e pendurados em cabides de metal, no chão um par de botas velhas que ele pensou já ter visto. No lado norte do armário um espaço na parede formava um pequeno esconderijo e ali, pendurada em um prego, havia uma camisa. Ele levantou-a do prego. A velha camisa de Jack dos dias de Brokeback. O sangue seco na manga era dele próprio, o nariz sangrara na última tarde na montanha quando Jack, em suas lutas de contorcionista, acertara o nariz de Ennis com força com o joelho. Ele tentou parar o sangue que estava em toda parte, com a manga da camisa, mas o sangramento não chegou a parar pois ele desabou como um anjo de asas dobradas sobre as flores após um soco de Ennis.

A camisa parecia pesada até que ele notou que havia outra camisa na parte de dentro, as mangas cuidadosamente arrumadas uma dentro da outra. Era a camisa dele mesmo, que ele julgava perdida, há tempos em alguma lavanderia, a camisa suja dele, o bolso rasgado, botões faltando, roubada por Jack e escondida dentro da camisa dele, o par como duas peles, uma dentro da outra, dois em um. Ele apertou o rosto contra o tecido e respirou lentamente pela boca e nariz, esperando sentir um mínimo do ar da montanha e do cheiro doce e salgado de Jack mas não havia cheiro algum, apenas a memória do mesmo, o poder da montanha Brokeback mostrando que não havia mais nada a não ser o que ele tinha nas mãos.

No fim o pato durão recusou que Jack levasse as cinzas. "Vou te dizer, nós temos nosso jazigo e ele vai pra lá." A mãe de Jack perto da mesa descascava maçãs com um instrumento afiado e serrilhado. "Volte mais vezes," ela disse.

Descendo a estrada esburacada Ennis passou pelo cemitério local cercado com arame farpado, um pequeno quadrado cercado na colina, algumas tumbas brilhando com flores de plástico, e não quis saber se era ali que Jack ficaria, enterrado na planície tristonha.

Algumas semanas depois no sábado ele jogou os tapetes sujos na caçamba da picape e levou-os para o lava-rápido Quik Shop para lavarem com o jato de alta pressão. Quando os tapetes limpos e molhados voltaram para a traseira, ele entrou na lojinha de presentes Higgins e se dirigiu até os cartões-postais.

"Ennis, o que está procurando nos cartões?" disse Linda Higgins, jogando um filtro de café ensopado na lata de lixo.

"Uma foto da montanha Brokeback."

"No distrito de Fremont?"

"Não, ao norte daqui."

"Não pedi desses. Vou pegar a lista de pedidos. Se eles tiverem te consigo uns cem. Preciso pedir mais cartões mesmo."

"Um basta," disse Ennis.

Quando chegou -- trinta centavos -- ele o pregou em seu trailer, uma tachinha de latão em cada ponta. Embaixo pôs um prego e nele pendurou o cabide e as duas velhas camisas sobre ele. Deu um passo pra trás e olhou para a composição em meio às lágrimas.

"Jack, eu juro -- " ele disse, embora Jack nunca tivesse lhe pedido pra jurar nada e ele não era do tipo que jurava.

Naqueles dias Jack começou a aparecer nos sonhos dele, Jack do jeito que era quando se conheceram, cabelos encaracolados, sorridente, dentes saltados, falando sobre se virar na vida e tomar suas próprias rédeas, mas a lata de feijão com as colheres sujas sobre o tronco também estava lá, com traços desenhados e cores berrantes que davam aos sonhos aquele tipo de obscenidade cômica. A colher era do tipo que se poderia usar como pé-de-cabra. E ele acordava às vezes triste, às vezes com aquele sentimento de alegria e libertação; o travesseiro às vezes molhado, às vezes os lençóis.

Havia algum espaço vazio entre o que ele conhecia e aquilo em que tentava acreditar, mas nada podia ser feito, pois se não tem jeito, deve-se aguentar.



*Râzi

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